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Escutar significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro (Paulo Freire).

Iniciando a preparação para o evento da International Theatre for Young Audiences Research Network (ITYARN), no Congresso da ASSITEJ, em Cuba 2024, que tem como tema “Voices of a new world: Legacy and Innovation in TYA”, comecei a refletir sobre a forma como estamos nos abrindo – especialmente no contexto do Brasil – para essas vozes. Quem está sendo escutado? Infelizmente, em nosso país, ainda há muito a se desenvolver para que todas as crianças e jovens possam ter igual espaço de expressão e, efetivamente, ser escutados.

Trabalho no Departamento do Ensino de Teatro da Unirio – Rio de Janeiro/Brasil, em que formamos professores de artes cênicas para atuar na educação básica, ou seja, que irão trabalhar com teatro em salas de aula frequentadas por crianças. E, em consonância com a citação de Freire na epígrafe (da obra Pedagogia da autonomia, de 1996, p.119), venho dialogando com uma proposta pedagógica que tem me encantado: a pedagogia da escuta, de Loris Malaguzzi, forjada no contexto da cidade de Reggio Emilia, na Itália. Alguns aspectos dessa proposta parecem afinar-se totalmente com algumas discussões que vêm sendo empreendidas nos encontros da ASSITEJ Internacional e podem indicar caminhos, pois ampliam as ideias de “vozes” e de “escuta”.

Na perspectiva da emissão – representando as “vozes” das diversas infâncias –, a proposta sugere a percepção das “cem linguagens da criança”. Esse conceito é, na verdade, uma imagem – bastante cara, aliás, ao universo das artes, posto que enfatiza os diversos modos de expressão da criança, para além da fala e da escrita: o jogo, as brincadeiras, as demonstrações de afeto, a corporalidade, os sentimentos, as inter-relações, e tantos outros.

Já a recepção se articula à ideia de escuta – e se configura como uma proposta pedagógica de fato. A escuta se dá por meio de uma premissa básica a ser adotada por toda a comunidade: as crianças de todas as faixas etárias são sujeitos ativos e plurais nos processos artísticos e educacionais.

Assim, mais do que a ideia de que há uma fala a ser escutada, propõe-se que o diálogo se dê no encontro, na relação. A expectativa dessa proposta é, portanto, de que as experiências nos espaços de formação se baseiem na troca da dimensão mais ampliada destes dois lados que se encontram: as vozes (que se revelam por meio de múltiplas formas de expressão/linguagens) e a escuta (que se dá por meio de uma dimensão horizontal). E as experiências artísticas se revelam como momentos privilegiados para essa dimensão relacional.

Voltando ao contexto do Brasil – um país que no campo da pedagogia tem contribuições de expoentes como Paulo Freire e Augusto Boal, mas, contraditoriamente, ainda tem muitos caminhos a trilhar para que todas as múltiplas linguagens das mais diversas crianças sejam escutadas. Em relação à produção artística, no entanto, muitos grupos e obras no país destacam-se exatamente pela capacidade de trazer para a experiência cênica essa dimensão de encontro, de uma relação horizontal em que as crianças são partes fundamentais do jogo. Prova disso é o grande crescimento, nos últimos anos, do movimento de teatro para a primeira infância, resultando em uma cena significativa e de bastante qualidade para esse segmento social.

Retomando o movimento que me fez compartilhar estes pensamentos, os eventos e encontros da ASSITEJ têm abrigado propostas artísticas que acessam essa dimensão relacional e que têm nos proporcionado variados espaços de troca e aprendizado mútuo, fortalecidos pelas diversas redes que se entrelaçam. Que possamos nos encontrar muitas vezes mais – presencial ou virtualmente – trocando nossas experiências e reflexões nesse universo que nos encanta e nos une.